terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Famílias

Mais um trecho do meu romance O Que Ficou Por Fazer.
"Famílias tinham etapas, fases, evoluíam no tempo, apresentavam novas faces para o mundo. Isso era uma coisa que não tinha me ocorrido antes e agora me parece perfeitamente natural enquanto observo Vovó Ana e Chico conversando à mesa do restaurante diante de mim. Gosto da visão dos dois juntos, gosto da idéia de finalmente reunir as partes separadas de minha vida que antes tinha mantido cuidadosamente separadas por tanto tempo. Era aniversário dela e achei que tinha tudo a ver levá-la para jantar depois dos muitos programas de infância que ela nos proporcionou.
Minha avó estava encantada com Chico, contava um resumo da história familiar para ele, fazendo questão de destacar as realizações de minha mãe, a estrela dos Miranda. Vovó não sabia, mas ele tinha se vestido com extremo cuidado para a ocasião, colocou seu blazer cor de mostarda com sua melhor camisa branca e uma calça jeans nova, esmerou-se na hora de pentear o cabelo (que ele tinha mania de deixar espetado, despenteado). Ele me perguntou se devia usar uma gravata. Achei uma gracinha que ele se preocupasse tanto em causar uma boa primeira impressão. Eu sorri e disse a ele: — Ela é minha avó, não o papa.
A comemoração oficial seria no domingo, com um elaborado almoço, como sempre. Eu tinha decidido que era hora de apresentar Chico à família, mas queria fazer isso aos poucos, em pequenas doses, para não pressioná-lo. E minha avó parecia extremamente satisfeita em ter sido a primeira a ser selecionada para esta honra. Ainda assim, era estranho estar sentada aqui, escutando eles tagarelando alegremente, um muito encantado com o outro, enquanto sentia que tinha alguém faltando à mesa. De uma hora para a outra, ela parecia tão frágil nos seus 87 anos. Minha avó sempre pareceu ser eterna, sempre os mesmos vestidos elegantes, as mesmas bolsas em que ela parecia ser capaz de guardar tudo, o cabelo sempre pintado de louro, o eterno perfume de lavanda e talco. Agora, eu via que corria o risco de perdê-la. Ela, como minha mãe, envelhecera da noite para o dia.
Daniel tinha sido seu preferido. Ela não admitia, dizia que todos seus netos eram igualmente queridos, mas ninguém na família acreditava nela. Era para ele que ela fazia suas melhores sobremesas, dava os presentes mais caros, preparava os pratos preferidos dele para os almoços de domingo. Ele vivia no colo dela quando pequeno e, mesmo adulto, adorava ficar abraçado com ela, a única pessoa a quem ele demonstrava tanto afeto abertamente. Com todas as outras pessoas, ele era reservado, quase frio. E ela sempre o tratou por “meu menino”. Foi o que ela não cansou de repetir durante o velório, enquanto acariciava seu rosto, parada ao lado do caixão, meu menino, meu menino.
Quando Vovó Ana chegou no restaurante e eu a apresentei ao Chico, ela me olhou bem nos olhos e perguntou se isto queria dizer que eu finalmente iria desencalhar.
— Calma, vó — respondi, rindo. — Uma coisa de cada vez.
Mas estava patente a esperança na expressão dela. Ela queria bisnetos. Só que ela estava olhando para a pessoa errada. A idéia de ter filhos ainda me assustava. Não quis dizer que ela teria que depender dos meus primos, sempre muito mais sociáveis que Daniel e eu. Logo, um deles estaria se casando e se reproduzindo. Nossa família iria adquirir outra feição com a chegada de novas gerações, novos rostos, crianças brincando pelo chão, correndo pela casa na noite de Natal, e a ausência de Daniel se tornaria uma lembrança apagada embora querida, uma foto a ser colocada na estante.
Descubro-me começando a relaxar enquanto ouço minha avó contar histórias constrangedoras sobre minha infância e adolescência. Não me incomodo desde que ela não comece a mostrar fotos de minha fase de vítima da moda. Vovó decide contar sobre meu único grande gesto de rebelião contra minha mãe, quando eu sumi do Jardim Botânico durante um passeio. É estranho ouvi-la descrever o lado da minha mãe da história, de me procurar desesperadamente pelo parque, preocupada, imaginando os piores desfechos. O que me lembro era que minha mãe queria me levar para um restaurante que eu odiava depois do passeio e eu decidi dizer não, que queria ir para casa. Não recordo agora se estava cansada ou se armei o barraco para conseguir atenção dela, uma estratégia perfeitamente razoável para uma menina de 12 anos necessitada de carinho. De todo modo, quando ela bateu o pé e insistiu que fôssemos para o restaurante, eu simplesmente saí correndo e fui para casa. Caminhei o trajeto todo já que estava sem dinheiro para o ônibus, arrependendo-me do meu gesto impensado depois de perceber que não estava com a chave do apartamento, mas decidida a não dar o braço a torcer. Fiquei sentada na porta de casa, esperando minha mãe chegar para que eu pudesse ir ao banheiro. Dona Carolina ficou tão aliviada ao me ver que nem chegou a me dar um grande castigo. Ela esqueceu que eu podia até ser mal-criada, mas continuava sendo uma menina ajuizada. Eu ameacei voltar para casa e foi exatamente o que eu fiz.
Todos fazemos isso em um momento ou outro, essas coisas que sabemos lá no fundo que estão destinadas à mágoa e ao desastre. Algo em nós provoca um curto-circuito em todas as luzes de aviso, o alarme interior de cautela nos dizendo para ter cuidado, para dar o fora enquanto ainda é tempo. Faz parte de quem somos, todas as idiotices que cometemos e que, a seu modo, também encontram um meio de nos moldar.
Havia uma mensagem da Antônia no correio de voz do meu celular. Ao sair da sua casa, dei meu cartão de visitas a ela e agora ela me liga insistentemente, querendo se encontrar comigo de novo. Antônia parece determinada a me transformar em sua amiga, como um meio, talvez, de tentar reparar sua traição de meu irmão. Ou talvez, através de mim, ela queira saber porque Daniel se matou. De todo modo, não tenho certeza se quero me aproximar dela. Sua sedução era um tanto assustadora e tinha medo de ser puxada para seu círculo. Ao mesmo tempo, seria uma forma de ter acesso a um lado de meu irmão do qual eu não sabia muito. Enquanto pensava no que fazer, meu celular e sua mensagem pesavam toneladas no meu bolso.
Há uma sensação estranhamente familiar neste situação, uma espécie de déjà vu deslocado.
Minha avó sempre foi a guardiã da história da família. Ela conseguia listar os nomes de todo mundo nas gerações anteriores, identificar quem era quem nas fotos em preto e branco antiqüíssimas que ela guardava zelosamente na sua casa. Isto não era muito diferente daqueles almoços de domingo em que ela fez questão de instruir a mim e Daniel nas histórias de nossos tataravôs, já há muito mortos, os imigrantes portugueses que vieram abrir uma mercearia aqui no Brasil. A loja não existia mais. Ela foi vendida há muito tempo pelos meus bisavôs em função de uma crise econômica ou outra, e eles então se dedicaram ao serviço público para ganhar seu sustento. E muitos anos depois, nos anos 70, o prédio neoclássico onde a loja tinha funcionado foi vendido, demolido e um prédio de apartamentos moderno construído no lugar. Mas ela fazia questão de apontar o local e era isso o que eu sempre lembrava quando passava por lá.
Vovó Ana nos contou essas histórias várias e várias vezes. Eu há muito tinha esquecido os detalhes, não vendo muito interesse em pessoas que nunca tinha conhecido. Porém, agora eu imaginava que esta seria minha função nesta família também, a de preservar as histórias de Daniel para aqueles que o conheciam pouco ou que nunca o viram. Esse era um tesouro que valia a pena salvaguardar, uma lição que ela tentou me ensinar pouco a pouco com o passar dos anos.
Minha mãe parecia não ter absorvido nada do passado. Ou talvez sua rebelião contra a mãe a tivesse feito rejeitar o passado que Ana tanto idolatrava. De repente me bateu que esta era a mulher que tinha dado forma a minha mãe e, indiretamente, a mim também. Era estranho pensar nisso já que eu não sabia quase nada da infância de minha mãe, apenas a versão filtrada que minha avó forneceu a mim e meu irmão nesses anos todos. Eu realmente não fazia idéia se Dona Carolina tinha sido solitária ou gregária, o que ela gostava e desgostava quando adolescente. A história de minha mãe que eu tinha na minha cabeça era basicamente composta de seus anos como adulta, todas as coisas que nós mesmos testemunhamos, as pistas que reunimos das narrativas que outros nos contaram. Era como se ela tivesse sido gerada na forma adulta final que conhecíamos tão bem, como Palas Atená brotando da cabeça de Zeus, já paramentada com capacete, armadura e escudo.
Talvez, de certo modo, todos nós rejeitássemos parte do que nossos pais tinham a nos oferecer, ingratos, ansiosos por afirmar nossa independência. Não que esta rebelião tivesse produzido qualquer grande realizador em nossa família. Com a exceção de Dona Carolina, ninguém mais exibiu qualquer talento especial. Éramos todos lentos e sóbrios em empregos comuns e tradicionais. Ninguém iria ficar rico, ninguém iria se destacar. E até a morte de Daniel, a família acreditou que seria poupada de qualquer tragédia.
Ocorre-me que o que eu reconheço aqui é a essência de minha avó, a coisa que a torna ela mesma, transparecendo nessa nova aparência desgastada. Ela só foi momentaneamente ocultada da visão. Ela voltou à superfície, e estou contente que o Chico possa vê-la como ela é agora, não doente sobre uma cama de hospital, ou pior, dentro de um caixão. Não tenho mais um irmão para mostrar e assim decidi mostrar a ele os outros membros de minha família para que ele saiba que eles existem, que é deles que eu venho, estas são as minhas origens, estas são as pessoas que me fizeram ser quem eu sou.
O momento passa e me vejo admirando esta visão mais uma vez, minha avó e meu namorado juntos, conversando, e penso que fiz uma coisa boa. E sinto-me privilegiada por ser capaz de estar aqui e ouvi-los, sabendo que é algo que posso não ter por muito mais tempo, que a perda está em toda a volta agora, uma presença definitiva na sala e em tudo o que eu fizer de agora em diante."

Nenhum comentário: