domingo, 28 de março de 2010

Engrenada

Mais um fim de semana na Travessa. Livraria cheia, muito cheia, quase insuportável. Até parecia época do Natal. E eu lá, agarrada aos cadernos, rabiscando, rabiscando, Sarah McLachlan, Annie Lennox, The Smiths no MP3 player para me dar o clima que eu quero. O texto engrenado, em quinta marcha, os pequenos detalhes que gosto de dar ao texto se acumulando. Adoro esse trabalho de formiguinha. Uma palavra a mais aqui, outra ali. Uma frase invertida para dar um ritmo diferente. Qual o melhor adjetivo para uma determinada situação, de que modo posso dizer aquilo que quero com a densidade que quero? É burilar, burilar, burilar. Amanhã, a volta ao trabalho. Esta é uma daquelas semanas em que eu queria poder decretar férias. Não dá, tenho muito o que fazer. Inicio a contagem regressiva até a sexta-feira, bendito feriado.

sábado, 27 de março de 2010

Infiltração

Mais um trecho do meu romance O Que Ficou Por Fazer:

Não sei se quero imaginar esse último mês e a decisão que ele tomou. Como alguém pode tomar essa decisão? Não há como segui-lo até o fim. Meu irmão teria de seguir sozinho, nesse que foi seu estado natural. Ele nunca deixou que nós o acompanhássemos. Ele não quis contar tudo até o fim, talvez não conseguisse, vai me deixar aqui sem saber, tendo de adivinhar.

Agora que cheguei ao fim, quero voltar ao começo, ler os primeiros diários, trazê-lo de volta à vida de certo modo, não deixar que ele suma na escuridão. Sei que este projeto que criei para mim mesma nunca será realmente concluído, haverá sempre mais alguma coisa para examinar, dissecar. Suas cartas, seus contos, cada vírgula em cada diário. Sempre haverá algo que ficou por fazer, alguma tarefa inacabada, uma frase não compreendida.

Sei que, com o tempo, pouco a pouco, verei meu irmão se infiltrando em mim e nos tornaremos um só. Eu falarei na voz dele e ele se moverá com o meu corpo e eu talvez escreva a história dele no mesmo tom melancólico que ele usava em todos os contos. É assim que ele vai sobreviver, meu irmão, meu quase gêmeo, a outra metade que nunca pensei ter. E terei de viver o maior tempo possível para que ele viva e envelheça junto comigo neste novo futuro que descobri para mim mesma e viveremos felizes para sempre.

Prazeres

Não há nada como uma boa refeição e uma conversa interessante partilhada entre amigos numa noite de sexta-feira. Esse é um dos grandes prazeres da vida e é uma pena que, às vezes, ele pode ser tão raro.

Infância

Mais um trecho do meu romance O Que Ficou Por Fazer:

Quando eu era criança, a felicidade podia ser encontrada em algo tão simples quanto uma barra de chocolate, um picolé. Lembro-me de descer correndo as escadas com uma nota de um cruzeiro na mão, atravessar a rua e comprar um picolé com o sorveteiro da esquina. O nome dele era Milton e bastava ele me ver chegando para já ir estendendo um Chicabon em minha direção. Não sei por que ainda guardo o nome dele quando agora pareço ser incapaz de lembrar o nome do garçom do restaurante da esquina aonde vou quase todo dia.

Se tinha acabado o Chicabon, também havia o Eskibon (se Graça é viciada em Coca-Cola, eu sou tarado por chocolate em todas as suas formas) e se eu tinha alguns trocados sobrando, comprava chiclete. Sabor tutti-frutti, naturalmente. Milton conhecia todas as minhas preferências, sempre me atendia com um sorriso. Muitos anos depois, eu o vi trabalhando como cobrador em um ônibus. Ele já não sorria mais e não reconheceu seu cliente mais fiel.

Quando você é criança, a felicidade reside na satisfação de dar a primeira mordida no picolé de chocolate, em conseguir fazer uma bola de chiclete, em ganhar do Papai Noel aquela roupa de Batman que você tanto queria. Você está cercado por objetos que lhe dão prazer. A felicidade pode ser catalogada, como na coleção de bonecas de sua irmã, arrumada perfeitamente na prateleira acima da cama, é mais um item no cinto de utilidades. Ela tem dimensões exatas, é palpável e sempre pode ser ampliada com mais acréscimos ao acervo. Adultos, continuamos nos apegando aos objetos. O inventário da alegria, no entanto, é mais incerto, sujeito a perdas que não se sabe direito como calcular.

segunda-feira, 22 de março de 2010

The day after

Sabe qual é o problema de passar o fim de semana escrevendo e ter atingido justo aquele tom que você queria? No dia seguinte é fogo tentar guardar a capa vermelha, botar a gravata e sentar a bunda na cadeira para trabalhar. Uma ponta da capa insiste em ficar aparecendo. Tudo o que você quer é sair correndo e voltar para a livraria, escrever mais um pouco. Ai, ai, hoje vai ser um dia daqueles.

domingo, 21 de março de 2010

Rastro

Depois de passar o dia na Travessa, burilando o romance, mexendo nos detalhes do texto, chego em casa toda acesa, um vago rumor de palavras ainda soando na minha cabeça. Não há sensação mais deliciosa que essa.

sábado, 20 de março de 2010

Sobrevivência

Adriana Lisboa postou um texto excelente no seu blog para complementar o post a respeito de viver de escrever. Gostei tanto que reproduzo o texto aqui embaixo.

Diante de tantos, tão variados e tão interessantes comentários ao post que fiz sobre a escrita como forma de sobrevivência, queria lembrar aqui algumas coisas:

Muitos dos maiores compositores da história da música sobreviviam de seu trabalho e realizaram obras primas por encomenda. Mozart, um deles, escreveu concertos belíssimos para flauta, um instrumento que ele odiava visceralmente, por encomenda. Uma vez lhe pagaram para escrever um concerto para flauta e harpa e ele reclamou, numa carta, do quanto estava sofrendo tendo que compor para os dois instrumentos que mais detestava. Tocamos e ouvimos esses concertos até hoje tirando o chapéu para o compositor. Muitos pintores, escultores e provavelmente todos os arquitetos trabalharam, se não com um mecenas bancando o que faziam, pelo menos com gente encomendando suas obras. O teto da Capela Sistina. O Balzac de Rodin. Uma lista infinita. Essas obras e esses artistas deveriam ser considerados “menores” porque se “renderam ao sistema”? Dizem que Dostoiévski escreveu muita coisa para pagar as dívidas que contraía nos jogos. Pixinguinha e seus Oito Batutas saíram em turnê pela Europa nos anos vinte bancados por Eduardo Guinle.

Precisamos acabar com os nossos preconceitos e com um purismo que não significa nada nem leva a lugar nenhum.

Uma outra discussão, que não deve se confundir com essa, é como fazer com que mais pessoas tenham acesso à arte, à cultura, aos livros. O que deveria ser direito de todos e não privilégio de uma minoria letrada. Mas isso não tem nada a ver com o direito moral que as pessoas que fazem arte têm de sobreviver dela. Alguém sugere aos médicos que eles atendam as pessoas de graça porque o sistema de saúde pública não funciona, e porque a medicina deveria ser desprendimento e doação, e porque é moralmente errado vender a cura? Que médico médico-mesmo, merecedor da herança de Hipócrates, deveria atender de graça e ganhar dinheiro fazendo outra coisa nas horas vagas? Ou pensamos que sim, os médicos devem ganhar pelo seu trabalho e sim, todo mundo deve ter acesso ao atendimento? São duas questões distintas e duas batalhas distintas.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Não me deixe

Estou desolada. Descobri ontem que a Christiane Amanpour, minha jornalista preferida de todos os tempos, está deixando a CNN. Ela vai para a rede americana ABC apresentar um programa semanal. Sou fascinada por ela desde que a vi instalada no telhado do Ministério da Comunicação em Bagdá, fazendo a reportagem de um bombardeio americano ordenado pelo Clinton por causa de alguma que o Saddam tinha aprontado. Era de madrugada (lá em Bagdá), parecia estar frio, havia bombas explodindo na cidade e a mulher ali, em cima do prédio, calma, falando com o âncora como se fosse perfeitamente normal estar debaixo de fogo cerrado. Se havia uma guerra, um terremoto, um grande desastre, lá estava ela, com aquele rosto forte, inabalável, composta, mesmo em meio a cenários terríveis. Vou sentir falta de vê-la fazendo aquelas perguntas duras, que encostam o sujeito na parede. Vou sentir falta dela. Quem sabe, eu consigo achar um jeito de baixar o novo programa dela. Bye, bye, Christiane.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Indócil

Fim de semana chegando e já começo a ficar indócil em casa. Às vezes, esperar pelo sábado é complicado. É difícil me concentrar no trabalho. Parar quieta tempo suficiente para fazer qualquer coisa por cinco minutos é uma vitória. Ficarei muito feliz quando puder escrever todos os dias. Isso ainda está longe, mas não custa sonhar. E o tempo vai passando.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Viver de escrever

No blog de Adriana Lisboa, um texto excelente sobre viver de literatura, uma questão sobre a qual eu penso com frequência. Vale a pena conferir. O artigo pode ser lido aqui.