domingo, 31 de janeiro de 2010

Larga o osso

Chego em casa após passar no mercado para fazer as compras da semana. Comprei dois daqueles ossos de couro para meus cachorros. Estou com eles há quase três meses e acho que eles merecem um agrado. Entrego um osso para a Zequinha, que prontamente sai correndo para seu posto na minha cama para devorar a iguaria. (Estou pensando em rebatizá-la de La Maja Desnuda já que ela adora passar o dia languidamente deitada na minha cama como uma diva e, em última análise, ela está nua.) O outro osso vai para o Wilson, claro, que, enquanto guardo as compras, vai direto para o canteiro de plantas e tenta enterrar o seu petisco. Satisfeito com o resultado de seus esforços, ele vem me procurar com o nariz sujo de terra, sorrindo, língua pendurada para fora de lado, fazendo com que ele tenha um ar de maluquete. Minha dúvida agora é quanto tempo esse osso vai ficar enterrado.
E eu que pensava que cachorros só enterram ossos em desenho animado.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Doidivana

Eu costumo acompanhar o blog da Ivana Arruda Leite todos os dias. Eu não a conheço pessoalmente, mas ela me consquistou com seu blog, Doidivana. É uma delícia de blog não só pela descrição que ela faz das saídas com os amigos para jantares e almoços, mas também pelas amostras de seu texto que ela nos oferece. E hoje tem um texto particularmente delicioso. O blog da Ivana você encontra aqui.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Personagens

No romance que estou escrevendo agora, a história é contada pelos quatro personagens principais na primeira pessoa. O desafio é conseguir diferenciar essas quatro pessoas, dar a elas motivações diferentes, feições diferentes, manias, defeitos. Esse sempre é um desafio para mim já que eu não tenho uma visão muito objetiva dos personagens. Sou um pouco como aqueles atores que não criticam seus personagens, os defendem até a morte. Ainda não consegui escrever um personagem que fosse bem canalha, mas na prática o que eu escrevo não se presta muito a isso. Tenho vontade de criar alguém bem sacana, canalha, filho da puta. Não sei se eu conseguiria. Talvez eu chegue mais perto disso com o próximo romance que eu tenho na cabeça. É, já tenho outro esquematizado no meu caderno de ideias, fruto da fusão de duas ideias antigas, inclusive de um texto que eu escrevi há muitos anos, arquivei como sendo uma merda, depois desencavei ano passado e descobri que não era tão ruim assim. Eu só não tinha desenvolvido a trama o suficiente.
Mas neste romance, a história é contada pelo protagonista e só. O desafio deste romance será outro, o de equilibrar eventos que acontecem em 1989 e em 2009, usar o fundo histórico desses dois anos, mas sem ser didática demais. Gosto muito de ter esse pano de fundo de transformações de 1989 e, ao mesmo tempo, todas as transformações tecnológicas que resultaram no mundo que vivemos em 2009 no texto. E nessa passagem de 20 anos, transformar um rapaz de 25 anos em um homem de 45 anos com todas as lições que você aprende por ficar dando de cara na parede. Será que eu consigo?

domingo, 24 de janeiro de 2010

Quase lá

É muito bom quando você sente que está chegando na reta final de mais um pedaço de um romance. Acho que com mais um bom sábado posso fechar a terceira parte do romance (são quatro). E aí, em fevereiro, vamos fechar a quarta parte que já está pela metade. O próximo passo será então reescrever essas quatro partes, refinar as ideias, o texto, acrescentar mais cenas. Agora é que começa o trabalho pesado. É uma das partes que eu mais gosto. Puxa, estica, cola, costura. Nesses dias em que praticamente todo mundo escreve usando o computador, eu insisto em usar caneta e caderno. Reescrever também segue sendo um processo linear. Sento com a primeira versão aberta na minha frente e vou lapidando o texto aos poucos. Já li muitas entrevistas com escritores que descrevem como eles vão cortando, cortando o texto até ficar só com aquilo que interessa. Mas como eu começo a escrever sem saber direito aonde vou parar, a primeira versão funciona como um esqueleto. As versões posteriores servem para que eu vá preenchendo os claros, criando cores, sombras, tornando mais claro o desenho que eu quero para o texto final. Por fim, tudo será digitado no computador para a preparação da versão final. Com sorte, tudo estará pronto até o final deste ano. Cruzem os dedos.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Eles estão lá fora

Agora eu tenho a confirmação de que há mesmo uma conspiração de criancinhas. Hoje, na livraria, quase tropecei num carrinho de bebê colocado estrategicamente atrás de mim. Eu me virei para ver no que tinha tropeçado e dei de cara com um menino olhando fixo para mim. Poucos instantes depois, ao seguir para a seção de livros de culinária, dei de cara com o mesmo menino, ainda me olhando fixo. Não pode ser coincidência. Eles estão lá fora, nos observando. Be afraid, be very afraid.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sorrows

O Segundo Caderno do Globo de hoje publicou uma entrevista com Siri Hustvedt, autora de As Desilusões de um Americano (The Sorrows of an American), um novo romance que será lançado aqui no Brasil. Acabei de ler esse livro há poucas semanas no inglês original e achei legal, embora um pouco prolixo em algumas horas. Houve momentos em que senti que a narrativa teria tido mais força se ela fosse um pouco mais compacta, menos dispersa em detalhes que, a meu ver, não acrescentaram muita coisa. O que eu gostei realmente foi como ela tratou do tema do pesar, de como ele segue te acompanhando mesmo que tenham se passado anos desde o falecimento da pessoa amada. Essa foi a parte que realmente me tocou no livro.

Chope

Ontem à noite houve um "chope de fraldas" para nossa colega legendista grávida. Infelizmente, nossas sugestões de nome (Legendilson e Legenderson) foram descartadas já que ela terá uma menina. Todavia, entretanto, o nome escolhido tem tudo a ver: Catarina. Quem já esteve no Estação Botafogo talvez conheça a Catarina original e vai entender porque esse nome é perfeito. Como não tive muito tempo em São Paulo para curtir a noite com os amigos, foi muito bom poder tirar a saudade do pessoal. O pessoal prometeu promover outros chopes para aproveitar a presença de nossa colega no Rio antes que ela volte para São Paulo. Mas tomara que na próxima escolham um lugar com ar condicionado. Nesse calor de bode que anda fazendo, ficar ao ar livre não é tão convidativo assim.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A mulher foge

Assisti na segunda à noite a uma entrevista excelente com o escritor israelense David Grossman. No final do ano passado ele lançou o romance A Mulher Foge pela Companhia das Letras. Este é o vídeo de apresentação do livro que a Companhia das Letras preparou. Comprei o livro durante a Mostra de São Paulo e estou doida para lê-lo, ainda mais depois da entrevista. Depois eu falo o que achei.


segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Confraria

Há alguns meses, eu tive o prazer de sentar à uma mesa, uma longa mesa de bar na Lapa com uma grande coleção de escritores. Estava lá acompanhando um amigo, que era a única pessoa que eu conhecia de verdade. E apesar de eu ser muito tímida nessas situações em que não conheço ninguém, curti bastante essa noite por um simples motivo. Sempre quis sentar numa mesa de bar com outros escritores, poder conversar sobre literatura e outras coisas, fazer parte dessa irmandade. Em todo esses anos desde que comecei a escrever, nunca tive amigos escritores. Só agora estou tendo contato com outros escritores e estou achando isso um barato. A melhor coisa do mundo é encontrar outras pessoas que entendem o que você faz, as dificuldades e alegrias desse ofício.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Uma dica

Elvira Vigna vai lançar novo romance em fevereiro, Nada a Dizer. Esse título é genial. Por conta do lançamento, ela colocou no site dela um vídeo em que fala do livro e como ele foi escrito. O que eu ando curtindo ainda mais que o vídeo são as pequenas amostras do texto. A cada dois ou três dias têm mais algumas frases e elas estão me dando uma vontade enorme de ler esse livro. Fora isso, ela também tem vídeos em que fala da feitura de cada um de seus romances, que é uma discussão que sempre me interessa. Para acessar os vídeos basta clicar nas capas dos livros no lado esquerdo da tela. O site da Elvira você encontra aqui.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Pausa

Volta e meia você precisa de um dia para não fazer nada. O feriado está decretado.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Ou vai ou racha


Hoje dei o primeiro passo para tentar publicar meu primeiro romance. Não sei qual será o resultado dessa tentativa, mas eu sempre serei grata aos meus amigos que estão me ajudando nesse processo. Pessoas como essas são muito raras.
Por outro lado, de uma coisa eu tenho certeza. O romance vai decolar este ano de qualquer jeito.

domingo, 10 de janeiro de 2010

A aventura está apenas começando

Cozinhar está sendo uma aventura. Eu sempre que fui meio adepta da escola de culinária "restos da geladeira". Ou seja, eu pegava restos de coisas que estavam na geladeira da minha mãe e jogava tudo numa frigideira, jogava um ovo por cima e seja o que Deus quiser. Nem sempre funcionava, mas pelo menos eu tentava. Meio que ando fazendo isso agora, mas com coisas que compro no mercado, inspirada por pratos que experimentei em restaurantes. Já comprei alguns ingredientes orientais, pretendo comprar mais na semana que vem, ir à feira para comprar coentro e outras coisas que não posso conseguir no mercado. No final do mês, farei mais uma aula de culinária asiática.
Ontem, no supermercado, ao colocar minhas compras na esteira para o caixa, notei que não havia uma só refeição congelada. Comprei verduras, carnes, temperos. Não parecia em nada com as compras que eu fazia há alguns meses. E pegando uma frigideira para fritar um omelete que entraria como ingrediente na refeição de hoje, ela, que é uma de minhas maiores frigideiras, parecia muito pequena depois de passar semanas usando o wok. Sem falar que a coitada, negligenciada, estava empoeirada. Tive de lavá-la antes de poder continuar. Mas acabou dando tudo certo e o prato que eu fiz ficou muito legal. E até sobrou o suficiente para almoçar amanhã. Alguém está com fome?

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Mais fotos

Já que estamos no tema da fotografia, aproveito para postar o link para as fotos da Adriana Lisboa, uma escritora que eu admiro muito. Ela não coloca muitas fotos, mas as que ela coloca, meu Deus do céu, são deslumbrantes. Queria eu ter um olho para fotografia assim. Você pode achar as fotos da Adriana aqui.

Festivais de 2009


Após escrever sobre os festivais em que trabalhei ano passado no Rio e em São Paulo, agora ofereço as fotos que tirei durante esses eventos. Você pode acessá-las pelo link mais abaixo ou clicar aqui.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mais uma amostra



Estou terminando de organizar as fotos que tirei no Festival do Rio e na Mostra de São Paulo em 2009. Enquanto isso, mais uma pequena amostra das fotos que tirei.

Saída pela esquerda

Harlan Ellison, um autor americano que eu adoro, já disse que o autor despista o leitor quando parece estar convidando-o a passear pela vida particular dele. Passei muito tempo sem realmente entender essa frase. Não no sentido intelectual, bidu, qualquer um entende essa frase, mas como algo que você experimenta pessoalmente.
Escrevendo o primeiro romance, eu me toquei que o trabalho do escritor se assemelha ao trabalho do ator. Você pega as emoções que já sentiu na sua vida e as aplica ao que escreve. De tanto assistir Inside the Actor's Studio, sabia racionalmente que era isso o que acontecia. O que fez a ficha cair para mim foi um dia ter o privilégio de ver esse processo acontecer na minha frente. Assistindo à gravação de uma novela, vi uma atriz parada num canto do cenário, concentrada. Ela tinha de gravar uma cena em que conta aos filhos que vai se separar do marido. Sentei diante dos monitores que mostravam o cenário, num cantinho escondido atrás do set, e de lá dava para ouvir a atriz chorando antes mesmo da cena começar. Ela tinha relembrado uma emoção tão poderosa que estava difícil controlá-la. Mesmo depois de gravada a cena, ela levou um tempo para se recompor. É uma coisa que eu nunca esqueci.
No caso do escritor, o detalhe é que ao pegar a emoção que você sentiu numa certa circunstância e jogá-la em outro contexto, ela vira ficção. Você também aproveita e usa essas emoções para ficar no lugar de outras. A perda de um amigo pode fazer as vezes da perda de um pai ou uma mãe ou o nervosismo que precede rever um membro da família que não se vê há muito tempo pode tomar o lugar da espera amorosa. Nem tudo é o que parece ser.
O que pode parecer um contrassenso é que eu automaticamente instalo um filtro entre a emoção e eu enquanto escrevo. Desconfio que alguma distância seja necessária para não deixar que eu perca o controle da narrativa. O que não quer dizer que não haja ocasiões em que eu me surpreenda com o que escrevo. Mas por mais instintivo que seja o meu processo de escrever, sempre tem uma parte de mim que está vigiando, garantindo que eu não perca o caminho.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Lavando a roupa suja

Estreia mundial



E agora, em estreia mundial, Wilson e Zequinha, meus lindos cães adotados. O Wilson é o grandão sorridente. Mas não reparem, a Zequnha é um pouco tímida.

Mobiliário

Ontem, uma amiga ligou para meu celular e perguntou se eu estava na Travessa. Não, eu estava em casa, descansando, porque virei a noite fechando um trabalho. Sabia que ia cair dura de sono na livraria, então eu não fui. Mas começo a perceber que de tanto ir lá, as pessoas estão começando a achar que faço parte do mobiliário. A fama tem suas consequências.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Rituais

Há rituais que eu entendo, outros que não. Essa festa toda em torno de uma simples troca de calendário é uma das que eu não entendo. Me dizem que há uma renovação. Que renovação? Não vejo renovação nenhuma. Tudo é igual ao que era há três dias atrás, só que agora temos que ter cuidado na hora de botar a data nos cheques. Para mim, todas essas comemorações de Ano Novo são uma conspiração dos fabricantes de champanhe e dos especialistas em fogos de artifício para venderem seus produtos no fim do ano. E os supermercados devem aproveitar para vender o que sobrou daquela comida toda de ceia de Natal que ficou nas prateleiras.
Nossa rotina vai seguir inalterada assim que começar a segunda e vamos seguir assim até o final deste novo ano. E aí vamos comprar mais champanhe e soltar mais fogos e torcer para o novo ano ser melhor que o anterior. Renovação? Que renovação?

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Destroços

Mais um pedaço do meu romance O que ficou por fazer:
"Estou em frente ao prédio dele, sentada num banco na pracinha. Olho as janelas fechadas, reparo como elas parecem vazias e abandonadas. Ali está a sala e ali o escritório e ali o quarto. Estamos vendendo os eletrodomésticos aos poucos, TV, geladeira, máquina de lavar. Minha mãe colocou um anúncio no jornal. As pessoas ligam e lá se vai o forno, o microondas.
O apartamento está sem vida, só esperando minha mãe chegar a um acordo com o proprietário sobre o aluguel devido antes que o local possa ser pintado e liberado. Desconfio que ela fica adiando essa providência assim como ficou adiando a limpeza do apartamento para não ter de encerrar essa etapa.
Por algum motivo, ao entrar no apartamento de Daniel pela primeira vez depois de sua morte, esperava que o lugar estivesse um caos completo. Pensei que o desespero dele pudesse se manifestar através da desordem. Mas tudo estava exatamente como vi quando o visitei pela última vez. A pia da cozinha só tinha a louça do café da manhã do dia em que ele morreu. A geladeira tinha muita cerveja e comida congelada, algumas coisas já fora da validade. Nada muito diferente da minha própria geladeira.
Esse é o detalhe que sempre me pega. Ele se sentou para tomar o café da manhã antes de se matar. Daniel escrevia essas longas e detalhadas cartas para as mulheres que amava. Ainda assim, não lhe ocorreu escrever um bilhete de suicídio. Ou talvez ele achasse que o gesto dramático de meter uma bala na cabeça fosse explicação suficiente. Talvez não tivesse medo de morrer, sabendo que havia deixado seus textos para trás, carinhosamente preservados naquela caixa.
Mais uma vez, penso que ele não queria ser salvo. Mais uma vez, bato contra a parede. Essa parede garante que eu não possa segui-lo. Tudo o que pareço saber sobre ele bate nessa barreira e se desintegra. Passei metade de minha vida morando com um estranho.
Daniel era uma figura alta, pálida, vestida predominantemente em tons escuros, gentil e silenciosamente observadora, seus olhos verdes surpreendentes captando tudo o que acontecia a sua volta. Ainda posso ouvir sua risada gostosa enquanto ele contava histórias sobre coisas que lhe aconteceram no Festival de Cinema do Rio.
A imagem do apartamento dele está congelada na minha lembrança, apenas esperando que meu irmão volte. O apartamento está aguardando pacientemente em sua brancura e silêncio que cheguem os pintores, mas ainda insisto em vê-lo como ele era antes, os móveis batidos e desencontrados, o jeito de acampamento temporário. Esse lugar continua a me acompanhar, o par perfeito para o fantasma tenebroso que segue meus passos.
É fácil imaginar meu irmão indo e voltando deste lugar, talvez até observando as crianças brincando nos balanços e gangorras, como faço agora, as mães que vem aqui com seus bebês para tomar o fraco sol da manhã. A padaria fica no meio da próxima quadra, a loja de ferragens na esquina e a papelaria na rua transversal. Também tem um supermercado a três quadras e, nos domingos, tem uma feira a duas ruas daqui. É um local agradável de se morar, não muito barulhento. Entendo perfeitamente por que Daniel decidiu viver aqui.
Este tem de ser o ponto de partida. Este era o habitat do meu irmão e qualquer investigação precisa partir daqui. É tudo parte dessa tarefa de que me incumbi, ler os diários e cartas, andar pelos mesmos lugares onde ele andou, me imbuir da atmosfera de sua vida, respirar os mesmo ares.
A pergunta que pontua os meus dias exige resposta. João [meu padrasto] me liga volta e meia, me pergunta se estou bem. Respondo automaticamente que estou bem porque sou incapaz de definir o estado em que me encontro. Pareço ter sido transportada para uma dimensão ligeiramente diferente da nossa, em que posso ver e ouvir tudo o que acontece, mas há uma espécie de campo de força entre o mundo e eu, como naqueles seriados de aventura da minha infância. Sinto um tipo de dormência e, ao mesmo tempo, tenho uma visão mais aguda de tudo. Já não sou eu mesma, sou a pessoa que foi criada após o suicídio do meu irmão. Sou Graça e mais aquele tiro, o borrifo de sangue na parede. Como explicar isso para João? Entendo perfeitamente o cuidado excessivo dele comigo e minha mãe, mas começa a me irritar que ele pergunte tanto se estou bem. João agora se vê como o protetor desta família. Não posso condenar sua tentativa de ser mais carinhoso, mais participante em nossa família desfalcada. Ele apenas chegou um pouco tarde demais.
É curioso que ele faça as perguntas que Dona Carolina evita. Ela não quer falar de suicídio, dor, morte. E parou com as ligações periódicas para xeretar a minha vida. Entre nós, só sobrou um assunto e ela quer distância dele.
É estranho que agora eu consiga imaginar minha mãe como uma mulher idosa de seus 80, 90 anos, tornando-se mais frágil a cada ano que passa, precisando de ajuda para sair de um carro, descer uma escada. Posso imaginá-la segurando no meu braço enquanto a levo ao médico, compro seus remédios. E mais tarde, depois que ela morrer, serei eu a pessoa encarregada do seu legado, manterei viva a memória do seu trabalho. A morte tornou-se uma realidade em minha vida, algo que preciso encarar, quer queira, quer não.
Devia estar incomodada, devia temer um futuro sozinha. Não consigo achar esse medo em mim. A morte é meu irmão circulando a minha volta em todo lugar que vou e por que eu deveria temê-lo?
Tornei-me a mediadora entre meu irmão e minha mãe. Todas as coisas que ele tem a nos dizer além do túmulo e ela não quer ouvir. Ela insiste em se manter firmemente ancorada no presente. O passado é uma dimensão inexistente para Dona Carolina. O pretérito foi abolido de seu universo. Será medo ou outra coisa? Talvez ela só não queira qualquer bagagem, para poder passar por tudo com a máxima velocidade possível, temendo se desmanchar se olhar demais para trás, pensar nas conseqüências de tudo o que fez. Minha mãe é como um tubarão, sempre em movimento. Do contrário, corre o risco de se afogar.
Pego minha câmera na mochila, faço fotos das janelas, do parque, das crianças brincando. Ajusto o foco, tiro mais algumas fotos.
Na luz aguada sob esta árvore no parque, posso vê-lo sentado aqui comigo. Agora, sempre vejo Daniel como ele estava no último dia, descalço, vestido apenas com um short preto, a arma no seu colo. Trago comigo o diário de seu último ano na mochila, o guia que escolhi para minha investigação. Ele pode revelar tudo e pode não revelar nada. É o que ele me legou, a evidência que sobrou de que ele um dia existiu, e isso não será desperdiçado.
É tarde demais para fazer qualquer outra coisa, então devo ser uma testemunha. Será que, na verdade, nós não sobrevivemos à morte dele?"

Conjunto da obra

Quando faço uma pilha do que escrevi nesse tempo todo, parece que não é muita coisa. Claro que estou excluindo tudo que escrevi antes dos 25 anos porque, sinceramente, é tudo uma droga. São todas as tentativas e erros desde que eu tinha 15 anos e fazem parte do meu aprendizado. Mas depois disso, tendo começado a trabalhar e sem a disciplina que só vim a adquirir depois, produzi muito pouco porque meu tempo era muito escasso e eu não sabia contornar isso. E daquilo que produzi, muito pouco prestava. Passei séculos tentando escrever um romance e uma novela que nunca chegaram a dar certo.
Eu poderia lamentar todo esse tempo perdido, mas aos poucos passei a entender que o tempo também entrava na escrita dos meus textos, que aquilo que você experimenta influencia sua visão do conto, do romance e de como você escreve. Quando minha avó morreu em 2006, eu finalmente entendi várias coisas sobre a natureza do pesar que nunca antes teriam me ocorrido. E isso entrou na revisão final do meu primeiro romance, nas cenas que eu acrescentei. O que escrevo agora tem influências de tudo o que passei nesses últimos anos, tudo o que li, e sempre será assim. Minha disciplina agora garante que eu escreva a cada oportunidade que se apresenta e acho que nos últimos 10 anos escrevi muito mais do que nos 20 anos anteriores. E, mais importante de tudo, com muito mais qualidade, consciência, controle. Com alguma sorte, vai continuar sendo assim.