"Estou em frente ao prédio dele, sentada num banco na pracinha. Olho as janelas fechadas, reparo como elas parecem vazias e abandonadas. Ali está a sala e ali o escritório e ali o quarto. Estamos vendendo os eletrodomésticos aos poucos, TV, geladeira, máquina de lavar. Minha mãe colocou um anúncio no jornal. As pessoas ligam e lá se vai o forno, o microondas. O apartamento está sem vida, só esperando minha mãe chegar a um acordo com o proprietário sobre o aluguel devido antes que o local possa ser pintado e liberado. Desconfio que ela fica adiando essa providência assim como ficou adiando a limpeza do apartamento para não ter de encerrar essa etapa. Por algum motivo, ao entrar no apartamento de Daniel pela primeira vez depois de sua morte, esperava que o lugar estivesse um caos completo. Pensei que o desespero dele pudesse se manifestar através da desordem. Mas tudo estava exatamente como vi quando o visitei pela última vez. A pia da cozinha só tinha a louça do café da manhã do dia em que ele morreu. A geladeira tinha muita cerveja e comida congelada, algumas coisas já fora da validade. Nada muito diferente da minha própria geladeira. Esse é o detalhe que sempre me pega. Ele se sentou para tomar o café da manhã antes de se matar. Daniel escrevia essas longas e detalhadas cartas para as mulheres que amava. Ainda assim, não lhe ocorreu escrever um bilhete de suicídio. Ou talvez ele achasse que o gesto dramático de meter uma bala na cabeça fosse explicação suficiente. Talvez não tivesse medo de morrer, sabendo que havia deixado seus textos para trás, carinhosamente preservados naquela caixa. Mais uma vez, penso que ele não queria ser salvo. Mais uma vez, bato contra a parede. Essa parede garante que eu não possa segui-lo. Tudo o que pareço saber sobre ele bate nessa barreira e se desintegra. Passei metade de minha vida morando com um estranho. Daniel era uma figura alta, pálida, vestida predominantemente em tons escuros, gentil e silenciosamente observadora, seus olhos verdes surpreendentes captando tudo o que acontecia a sua volta. Ainda posso ouvir sua risada gostosa enquanto ele contava histórias sobre coisas que lhe aconteceram no Festival de Cinema do Rio. A imagem do apartamento dele está congelada na minha lembrança, apenas esperando que meu irmão volte. O apartamento está aguardando pacientemente em sua brancura e silêncio que cheguem os pintores, mas ainda insisto em vê-lo como ele era antes, os móveis batidos e desencontrados, o jeito de acampamento temporário. Esse lugar continua a me acompanhar, o par perfeito para o fantasma tenebroso que segue meus passos. É fácil imaginar meu irmão indo e voltando deste lugar, talvez até observando as crianças brincando nos balanços e gangorras, como faço agora, as mães que vem aqui com seus bebês para tomar o fraco sol da manhã. A padaria fica no meio da próxima quadra, a loja de ferragens na esquina e a papelaria na rua transversal. Também tem um supermercado a três quadras e, nos domingos, tem uma feira a duas ruas daqui. É um local agradável de se morar, não muito barulhento. Entendo perfeitamente por que Daniel decidiu viver aqui. Este tem de ser o ponto de partida. Este era o habitat do meu irmão e qualquer investigação precisa partir daqui. É tudo parte dessa tarefa de que me incumbi, ler os diários e cartas, andar pelos mesmos lugares onde ele andou, me imbuir da atmosfera de sua vida, respirar os mesmo ares. A pergunta que pontua os meus dias exige resposta. João [meu padrasto] me liga volta e meia, me pergunta se estou bem. Respondo automaticamente que estou bem porque sou incapaz de definir o estado em que me encontro. Pareço ter sido transportada para uma dimensão ligeiramente diferente da nossa, em que posso ver e ouvir tudo o que acontece, mas há uma espécie de campo de força entre o mundo e eu, como naqueles seriados de aventura da minha infância. Sinto um tipo de dormência e, ao mesmo tempo, tenho uma visão mais aguda de tudo. Já não sou eu mesma, sou a pessoa que foi criada após o suicídio do meu irmão. Sou Graça e mais aquele tiro, o borrifo de sangue na parede. Como explicar isso para João? Entendo perfeitamente o cuidado excessivo dele comigo e minha mãe, mas começa a me irritar que ele pergunte tanto se estou bem. João agora se vê como o protetor desta família. Não posso condenar sua tentativa de ser mais carinhoso, mais participante em nossa família desfalcada. Ele apenas chegou um pouco tarde demais. É curioso que ele faça as perguntas que Dona Carolina evita. Ela não quer falar de suicídio, dor, morte. E parou com as ligações periódicas para xeretar a minha vida. Entre nós, só sobrou um assunto e ela quer distância dele. É estranho que agora eu consiga imaginar minha mãe como uma mulher idosa de seus 80, 90 anos, tornando-se mais frágil a cada ano que passa, precisando de ajuda para sair de um carro, descer uma escada. Posso imaginá-la segurando no meu braço enquanto a levo ao médico, compro seus remédios. E mais tarde, depois que ela morrer, serei eu a pessoa encarregada do seu legado, manterei viva a memória do seu trabalho. A morte tornou-se uma realidade em minha vida, algo que preciso encarar, quer queira, quer não. Devia estar incomodada, devia temer um futuro sozinha. Não consigo achar esse medo em mim. A morte é meu irmão circulando a minha volta em todo lugar que vou e por que eu deveria temê-lo? Tornei-me a mediadora entre meu irmão e minha mãe. Todas as coisas que ele tem a nos dizer além do túmulo e ela não quer ouvir. Ela insiste em se manter firmemente ancorada no presente. O passado é uma dimensão inexistente para Dona Carolina. O pretérito foi abolido de seu universo. Será medo ou outra coisa? Talvez ela só não queira qualquer bagagem, para poder passar por tudo com a máxima velocidade possível, temendo se desmanchar se olhar demais para trás, pensar nas conseqüências de tudo o que fez. Minha mãe é como um tubarão, sempre em movimento. Do contrário, corre o risco de se afogar. Pego minha câmera na mochila, faço fotos das janelas, do parque, das crianças brincando. Ajusto o foco, tiro mais algumas fotos. Na luz aguada sob esta árvore no parque, posso vê-lo sentado aqui comigo. Agora, sempre vejo Daniel como ele estava no último dia, descalço, vestido apenas com um short preto, a arma no seu colo. Trago comigo o diário de seu último ano na mochila, o guia que escolhi para minha investigação. Ele pode revelar tudo e pode não revelar nada. É o que ele me legou, a evidência que sobrou de que ele um dia existiu, e isso não será desperdiçado. É tarde demais para fazer qualquer outra coisa, então devo ser uma testemunha. Será que, na verdade, nós não sobrevivemos à morte dele?"
sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário