sexta-feira, 24 de julho de 2009

As coisas que amamos



Inspirado por Stephen Sondheim

As malas estão ao lado da porta. São malas caras, de grife. As roupas que foram jogadas nelas apressadamente, com raiva, também são caras, de grife, compradas sempre nas melhores lojas. Quase tudo neste apartamento custou muito dinheiro ou foram objetos encontrados em viagens à Europa, como os dois pássaros de ferro pousados na janela, adquiridos numa loja perto da Piazza Navona, em Roma. Foi lá, naquela cidade cor de ocre onde eles passaram a lua de mel, vagando pelas ruas estreitas, alheios a monumentos e milhares de anos de história, atordoados por respirarem os ares rarefeitos da felicidade. Outras viagens viriam depois, como a de Paris, quando completaram dez anos de casados, e ela aproveitou para comprar as gravuras que adornam a maior parte do apartamento. Ela tinha igualmente se encarregado de selecionar as pinturas da sala. Trabalhos de Luiz Áquila, Manfredo de Souzaneto, Paulo Leal. As gravuras e pinturas eram dela, mas os livros eram dele.
Havia uma vasta coleção de ensaios filosóficos que ele mal lera, mas cujo objetivo era mais impressionar do que instruir. Sua coleção de discos clássicos era mais honesta. Estes ele realmente ouvia, para irritação dela, que preferia compositores mais modernos. Mas eram os discos dela que serviam de fundo musical para os vários jantares e festas que promoviam, em geral para os parceiros dele nos negócios. Ela era a perfeita anfitriã, sempre capaz de oferecer calor humano e diversão. Seus buffets eram famosos entre o restrito círculo de amigos do casal. A longa mesa de carvalho que ela havia encomendado a um marceneiro de renome era perfeita para essas ocasiões e ela se esmerava em oferecer pratos incomuns e sofisticados. Nos últimos anos, aliás, era só para isso que a mesa servia, pois ambos já não sentavam à mesma mesa para as refeições. Preferiam que algum criado viesse lhes trazer o jantar em seus respectivos quartos. Com certeza esse era um arranjo melhor do que ter cada um sentado nas pontas da longa mesa, nunca trocando uma palavra por mal terem o que dizer um para o outro.
Hoje tudo era separado entre eles, quartos, camas, amantes, contas não conjuntas em diferentes bancos. Qualquer proximidade trazia à tona um campo minado de farpas, acusações, recriminações, raiva.
A sala de estar com seus arranjos de flores frescas estrategicamente distribuídos pelas mesinhas e estantes tornara-se um território a ser evitado pelo peso das lembranças que nela se acumulavam da mesma maneira que a grande cristaleira dos anos 20 acumulava as fotos de ambos, como registros arqueológicos expostos em um museu.
Poderia-se até imaginar que o apartamento era como uma daquelas casas de figuras famosas como Dickens ou Mozart, onde tudo havia sido preservado como era durante a vida dos residentes e os visitantes eram convidados a espiar objetos pessoais como óculos ou livros sobre uma mesa, colocados ali casualmente, como se o antigo morador tivesse se ausentado e fosse voltar a qualquer momento.
Talvez aqui fosse preciso ver o que estava ausente, como os pratos de porcelana chinesa que ele quebrara após uma das festas, puto por tê-la visto se engraçar com um dos convidados. Ou então os discos dele que ela arremessara pela janela durante uma discussão sobre algo que nenhum dos dois realmente lembrava mais. Ou quem sabe os filhos que eles nunca tiveram, os brinquedos que nunca povoaram a casa.
Mas as malas estavam ao lado da porta, prestes a transformar o passado em uma memória incômoda. Agora estas malas e as roupas amassadas dentro delas seriam levadas para outro país, outros ares, para esquecer as dores da dona, talvez nos braços de outro senhor tão distinto quanto aquele com quem ela casara. Talvez, quando ela viesse à sala, olhasse em volta e visse todos os objetos daquela sala e todas as lembranças que eles representavam, sentisse arrependimento e dor e um gosto de fel. Poderia se perguntar se todos aqueles anos tinham valido a pena. Mas de nada adiantaria revirar o passado agora. Tudo estava irremediavelmente acabado e as malas estavam ali ao lado da porta, aguardando. Só lhe restava partir. No futuro, quem sabe, essas coisas voltassem a ser queridas para ela. Mas, por ora, havia as malas e as roupas amassadas, esperando, esperando.
novembro de 1999 a julho de 2004
(texto inédito)


3 comentários:

4ESTAÇÕES - Tradução - Interpretação - Legendagem disse...

Ei, blogueira! Parabéns, vou parar aqui de vez em quando!
Bjs
Isa

bmurtinho disse...

Keep the Kryptonaite away!
Continue a investir na roupinha azul e vermelha com um S no peito.
Tô adorando.
Bjos,
Bruno

Anna Luisa Araujo disse...

Oi, Bruno,
Na verdade, agora estou precisando da capinha vermelha. Alguém sabe onde se compra?
Beijos,
Anna Luisa