Passei seis anos escrevendo um romance que ainda está por ser publicado. Foi uma das experiências mais difíceis e recompensadoras da minha vida. Levei muito na cabeça, recebi críticas maravilhosas e terríveis, joguei partes inteiras do romance fora para recomeçar duas vezes, mas essa coisa toda confirmou para mim que escrever é, de fato, a minha vocação primeira. É aquilo que me faz feliz, que me faz ser capaz de suportar todos os trancos. O romance trata de uma família e o que acontece com ela quando o filho mais novo se mata com um tiro na cabeça. Amor, morte, família, os tradicionais temas da literatura. Aproveito para dar um gostinho do que escrevi.
Aquilo que guardamos do que acontece conosco. É a lembrança feita matéria dura, cimento, pedra. Ela segue nítida, cristalina, imune à passagem do tempo, pronta a ser convocada a qualquer momento. Estar no enterro do vovô, ver aquele homem tão grande e vital e alegre metido numa caixa que parecia pequena demais para toda a sua estatura, mas ele cabia assim mesmo. Não havia como negar a ausência de vida naquele objeto parecido com cera no meio da capela e do choro. Estar no meio da sala, olhando hipnotizada para a TV e falando com uma pessoa atrás da outra pelo telefone, como se elas pudessem confirmar para mim que a imagem das duas torres queimando era mesmo real e, na hora em que a segunda torre se desfez em uma nuvem de cinzas, ouvir Daniel na outra ponta, tão pasmo quanto eu, falando: —Puta merda, o prédio caiu. Ou estar nessa mesma sala, ouvir a frase “tiro na cabeça” enquanto eu admirava o dia ensolarado lá fora, sentir uma súbita onda de fraqueza e tontura passar por mim, aquela vertigem de quase desfalecer, o universo encolhendo e girando em torno desse ponto, um tiro na cabeça, e fora isso só havia escuridão. Tudo continua girando em torno da dor, da ausência. Agora é a sobrevivência. Eu sobre-vivi, continuei existindo mesmo depois de ele parar. A dor é muito pesada e se acumula no fundo. A felicidade sobe, habita alturas rarefeitas. Tento dominar a arte de ficar no meio do caminho. Daniel me contou que esteve no topo das torres, olhou toda a paisagem em volta. As torres se transformaram em destroços retorcidos, naquele inusitado tapete de cinzas e papéis. Meu irmão desabou também. Sou a pessoa que sempre fui. Sou esse desvio que ele me fez tomar. Quem questiona tudo à minha volta é ele, não eu. Este olhar é dele. Ele o provocou em mim. Faz parte de seu legado, junto com as cartas e livros. Cinzas e papéis. (Essa era a surpresa, que as pessoas não sobreviveram, mas os papéis sim.) Sou minha mãe, sou todas as coisas que nunca tive coragem de lhe dizer. Minha vizinha de porta é uma mulher de seus quarenta e tantos anos que mora com a filha adolescente. De tempos em tempos, posso ouvi-las gritando através da parede da sala. Brigas normais de mãe e filha, imagino, ouvindo os gritos abafados, pedaços de acusações filtradas por tijolos e cimento. Digo imagino porque quando ouvi a primeira briga delas percebi o quanto era estranho eu nunca ter discutido com a minha mãe. E havia algo de triste nisso. No meu papel de boa filha, sempre fiz questão de não me bater com Dona Carolina, achei melhor deixar para lá quando não gostava de algo que ela fazia ou dizia. Minha teoria operacional era de que a ausência de confrontos, embates, caracterizava uma relação mais saudável, até me orgulhava de poder dizer que nunca brigara com minha mãe. Mas com aqueles gritos vazando para a sede de minha harmonia familiar, comecei a achar cada vez mais estranha aquela paz engessada entre eu e mamãe, as comunicações que passavam em branco. E, de branco em branco, criou-se uma distância de galáxias inteiras, irremediável, incompreensível mesmo para os maiores astrônomos da Terra. Um beijo, um abraço não terão forças para nos aproximar. Meros centímetros separavam minha vizinha da filha e de mim. Elas é que têm sorte. Que gritem, se xinguem, se batam. Uma sabe exatamente a distância que a separa da outra. E isso é uma felicidade que elas nem desconfiam possuir.
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