domingo, 27 de junho de 2010

O fracasso é glorioso

Mais um pedaço do O Que Ficou Por Fazer. Só para situar quem está lendo, esta cena se passa enquanto a Graça vai fiscalizar a pintura do apartamento do irmão morto.

As pessoas marcam suas peles com tatuagens. Eu serei marcada por uma ausência que nem todos os diários do mundo poderão preencher. Afinal, eu sei qual é meu lugar nesta família. Sou a sobrevivente, que suporta todos os golpes e segue em frente a despeito deles, sou a que não desiste. Eu vergo, mas não quebro. Em outra época, eu me revoltaria contra esse destino, só que hoje entendo por que ele me cabe.

Eu tinha de enfrentar. A porta estava fechada, nunca seria aberta de novo. Entendi enfim que é com a finalidade da morte que as pessoas têm problemas. É como quando você quebra o braço e fica se culpando por não ter sido capaz de evitar o acidente que provocou a fratura. Você olha para trás de novo e de novo, desejando que pudesse desfazer o gesso, as radiografias, a corrida para o hospital, os meses durante os quais terá que fazer tudo com a mão errada. Eu tinha certeza de que, se continuasse me movendo, eu o perderia de algum modo. Mas não, ele vem comigo a todos os lugares, como um cão leal numa coleira, um fantasma na coleira. Ele se senta comigo no restaurante, transparente e pálido, um buraco vermelho no lado da cabeça. Ele quer saber o que ando fazendo. Tentando esquecer você. Ele parece surpreso. Você morreu, esqueceu? Ele responde, E isso é motivo?

Meu fantasma desobediente. Quando é que vai embora, sumir e levar com você as imagens sangrentas na minha cabeça? Essa bala, Daniel, essa bala... Cara, como eu te odeio. Você me deixou sozinha. Não era para ser assim.

Eu te odeio e eu te amo e tudo o mais que se pode sentir entre as duas pontas desse espectro. Mano, você foi uma anta, achando que a dor ia chegar ao fim só porque você morreu. Ela só mudou de endereço. Até ajudei na mudança, botei tudo em caixas, babaca que sou. Este foi seu ato máximo de egoísmo. E não adianta ficar balançando sua cabeça insubstancial de fantasma. Essa é a verdade.

Eu te levei para casa molécula por molécula. Um pouco nas fotos, outro tanto nos teus livros manchados de comida, outra porção nos teus textos, o resto nas digitais que ficaram nas cartas. Você deixou pistas para tudo, menos para o mais importante.

E daí que você fracassou? Eu fracassei, a mamãe fracassou. Qual é o problema? O fracasso é glorioso e necessário e nos faz sentir mais vivos quando o superamos. Mas você nunca entendeu isso, não foi? Era você que tinha todos os insights, que entendia as pessoas muito melhor que eu. Onde estão todos os seus insights agora?

Olho para sua grande cabeça arruinada, a ferida sangrenta, me pergunto mais uma vez se não somos a mesma pessoa. Talvez por isso eu possa vê-lo, ouvi-lo quando ninguém mais pode. Depois que tudo estiver acabado, o que vai sobrar de mim, de você, de todas essas lembranças confundidas, todos os pesares de uma vida inteira? Elas cobrem tudo como uma poeira fina. Amo meu irmão afinal e sempre será tarde demais.

Não me mexo. Apenas observo enquanto pintam as paredes de branco. Resistir é inútil, eu sei. A ordem sempre prevalece. Os pintores vão destruir qualquer indício de que já houve vida aqui e logo, dentro de poucos meses, outras pessoas estarão morando neste espaço, amando, trabalhando, criando gerações inteiras. Elas também serão apagadas no futuro, como meu irmão está sendo, inexoravelmente. Todos serão apagados, inclusive eu, e em um futuro distante, quando não restar nada além das ruínas deste lugar, alguém poderá talvez reconstituir as vidas que passaram por este prédio, este apartamento. Esses arqueólogos futuros saberão que alguém chamado Daniel viveu e amou e chorou e se alegrou e sofreu e morreu aqui.

O futuro é o tempo das possibilidades. Ele se esqueceu disso. Às vezes, no meio do dia, enquanto faço algo banal como preparar o jantar ou varrer a casa ou dar ração para Beth, sinto bater uma raiva enorme dele. Daniel, seu babaca, penso, olhando para os objetos que trouxe de sua casa, e daí que a vida pode ser uma merda? Isso passa, tudo passa.

Se pudesse, marcaria todas as paredes com a palma da minha mão molhada de tinta vermelha como faziam os povos pré-históricos nas paredes das cavernas. Esse é um gesto tão instintivo, básico. Há milênios, o homem deixa seu grafite em túmulos egípcios, catedrais góticas, na Muralha da China. Eu estive aqui. Talvez a escrita do Daniel tenha a ver com isso, com o desejo de marcar sua presença no mundo de alguma forma, a eterna luta contra o esquecimento.

Vou até a janela da sala, tendo cuidado para não encostar na tinta fresca. Há um instante de déjà vu. Quantas vezes Daniel fez esse mesmo gesto de olhar pela janela?

Um instante se passa, mais outro. Sinto agudamente o rápido escoar dos segundos. Cada um é único, cheio de promessas. Sinto como se estivesse prestes a ter uma grande revelação, alguma iluminação que mudará este momento para sempre. O momento se vai. Não estou mais sábia do que era há dois segundos. Minha decepção não dura muito. Mais está por vir. É com surpresa que descubro que sou uma otimista.

6 comentários:

Anônimo disse...

muito bom isso, muito verdadeiro, fiquei emocionado mesmo...
sempre leio seu blog
Adelson

Anna Luisa Araujo disse...

Oi Adelson,
É muito bom saber que você gostou. Acho que quando o livro sair (se sair) terei ao menos um leitor.
Um abraço e volte sempre,
Anna Luisa

Anônimo disse...

terá sim, eu gosto do seu estilo de escrita própriamente dita e também da leveza com que você comenta as coisas do cotidiano no blog...
um abraço...
Adelson

Anna Luisa Araujo disse...

Legal saber disso. Obrigada, Adelson.

Anônimo disse...

Oi Anna, e aí? Tô botando a leitura em dia. A-mei, a-mei esse texto!! Fiquei aqui lendo em voz alta, é do caralho.
Falando super sério, escreve uma peça. Escreve uma peça, cara! Eu quero fazer uma peça sua. Pensa nisso. Aliás, pensa não. Escreve e me avisa.
E vc sabe que eu também serei sua leitora, né?
Beijo, amore, e até quinta na reunião.

Anna Luisa Araujo disse...

Cacilda, uma peça? Acho mais fácil alguém pegar e adaptar algo que eu escrevi porque esse é um meio que eu não domino mesmo. Mas, cara, fico muito feliz que você tenha gostado. Assim pelo menos eu sei que vou ter meia dúzia de leitores.
Beijocas e até quinta.
Anna Luisa